Zoravia Bettiol – A artista e sua cidade, uma dupla homenagem

A exposição Zoravia Bettiol – A artista e sua cidade, uma dupla homenagem marca os 250 anos de aniversário da capital gaúcha com 48 obras entre pinturas, gravuras, desenhos, tapeçarias e headdress. Aos 86 anos, Zoravia Bettiol é uma das artistas mais ativas e plurais no cenário das artes no Brasil. Realizou 156 mostras individuais e mais de 350 coletivas em diversos países.  Vitalidade, tenacidade e entusiasmo são algumas características contagiantes dessa ativista inquieta e contundente em todas as áreas onde atua.

Seleção Ecarta
A exposição de Zoravia Bettiol integra a quinta edição do projeto Seleção Ecarta, uma atividade especial da Galeria Ecarta que a cada ano destaca um artista. Além da mostra, são convidadas diversas personalidades para escrever sobre uma obra específica do artista. Os textos são publicados ao lado da obra durante a exposição, no site e nas redes sociais da Fundação Ecarta.

a artista

Zoravia mantem uma rotina de intenso trabalho no atelier em sua casa, na zona sul da cidade, e em inúmeros projetos. Em parceria com vários movimentos e coletivos está empenhada também em restaurar a Casa dos Leões, na Rua dos Andradas, para sediar o Instituto Zoravia Bettiol e ofertar à cidade mais um espaço de promoção de arte e cultura.
Artista de grande talento, arte-educadora e ativista na defesa da cultura, do meio ambiente e dos direitos humanos, além da produção artística, Zoravia se empenha em diferentes projetos de promoção de justiça social. O seu primeiro trabalho foi justamente uma série sobre “Mendigos e tipos de rua”, retratando a pobreza do seu entorno.
A artista visual nasceu na capital gaúcha em 1935, graduou-se em pintura pelo Instituto de Belas Artes de Porto Alegre. Estudou desenho e xilogravura em meados dos anos 1950 no ateliê do escultor Vasco Prado (1914-1998), com quem foi casada durante 28 anos.
Em 2007 foi lançado o livro em edição bilíngüe (português/ingês) Zoravia Bettiol: a mais simples complexidade, com textos de seis especialistas. Teve sua vida e obra contada no documentário de longa-metragem Zoravia, o Filme, dirigido por Henrique de Freitas Lima.
Um de seus trabalhos mais recentes foram as ilustrações do livro “Divina Rima”, lançado no final de 2021, a Divina Comédia para jovens, escrito por Gilberto Schwartsmann, contendo 50 ilustrações da artista produzidas em apenas cinco meses durante a pandemia.
Outra iniciativa atual que tem seu empenho é a mostra “Amazônia – Universo de Contrastes”, uma parceria entre a Associação Riograndense de Artes Plásticas Francisco Lisboa e o Instituto Zoravia Bettiol, que reúne obras de artistas visuais, refletindo a cultura indígena e denunciando a situação crítica enfrentada pela maior floresta tropical do mundo.

convidados

Alice

Amada Zoravia,

Quando eu te conheci, nos anos 70, eu era fã dos Beatles, do Chico Buarque e do Jerry Adriani.  E foi na época que eu trabalhava no Jornal do Almoço, que nos entreveramos. E desde o dia que te vi, pensei secretamente:
– Quando eu crescer, quero ser Zoravia.
Conversar contigo é estar diante de um templo sagrado. Lembro que te chamava de Zoraviol, um ajuntamento carinhoso que inventei. Escrevendo agora ZORAVIOL, penso que poderia ser um nome de floral para a eterna juventude?
– Tu és brincalhona, divertida e colorida.
E quando olho esta pintura do Universo Fantástico de Alice, que tem o rosto vazado, te vejo ali bisbilhotando em zigue-zague, com a tua eterna franjinha de guria sapeca, fazendo as eternas perguntas de Lewis Carroll.
– Onde fica a saída, perguntou Alice ao gato que ria.
– Depende, respondeu o gato.
– De quê, replicou Alice.
– Depende de para onde você quer ir.
E tu desenhou o teu mapa, e cantou a tua canção.
Varsóvia, San Francisco, Montevidéu, Praga, Genebra, Lisboa, Roma, Milão, Madrid, Estocolmo, Paris etecetera.
Ah! Como admiro a tua loucura criativa e mirabolante, extraída do tempo em que a morada foi San Francisco, transpirando o movimento hippie, e ouvindo Janis Joplin.
De bruços no travesseiro, me enrosco em sonhos e viajo num átimo lisérgico. E neste universo lúdico e psicodélico, estás lá, travestida de Alice no País das Maravilhas, através do espelho, perguntando para o Chapeleiro.

Cavalinhos no Céu, Série Primavera

A arte engajada de Zoravia Bettiol

Na história da artista plástica Zoravia Bettiol, a relação humana com o ambiente natural sempre esteve presente.
O prazer que o contato com a biodiversidade desperta foi uma experiência proporcionada por seu pai (professor e advogado com sólida formação humanista) desde os seus primeiros anos de vida. Ensinamentos que fluíam em
passeios dominicais pelo Bom Fim, nas redondezas da rua Santa Cecília (antiga rua Larga, onde nasceu), em piqueniques organizados pela família e na contemplação noturna dos astros, nas diferentes épocas do ano.
A consequência dessas imersões foi o ingresso de Zoravia na Ação Democrática Feminina Gaúcha e na Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (AGAPAN), no início da década de 1980. Como artista, seu primeiro trabalho de temática ecológica foi solicitado pela ambientalista Magda Renner para uma manifestação pública nos anos de chumbo da ditadura militar.
Assim como nesta obra de 1964, Cavalinhos no Céu, da Série Primavera, diferentes linguagens e conceitos estéticos e ecológicos sempre estiveram em sua produção artística. A instalação Sobreviveremos? foi o núcleo da exposição Verde que Te Quiero Verde, apresentada no Museu de Artes do Rio Grande do Sul (Margs), em 1979, também composta por desenhos seus e de outros artistas, oportunidade em que abordou a poluição
das águas, o desmatamento e a desigualdade social. Seguiram-se, em anos posteriores, participações em coletivas,
com as instalações Me Dejas Loco América, apresentada na fachada do Mercado Público de Porto Alegre, e Proteja a Vida, exposta na fachada da garagem Menezes Côrtes, durante a Eco 92, no Rio de Janeiro, e no Palace of Fine Arts, em São Francisco, Califórnia. A reciclagem foi abordada na instalação Reciclarte, realizada no DC Navegantes, no evento Essa POA É Boa, no início dos anos 2000. A informação de que o efeito estufa provoca um aumento da temperatura na terra, causando gravíssimas alterações climáticas, resultou
na criação de outra instalação individual, Alerta Ambiental – Degelo e Desertificação, apresentada na Feira Internacional do Meio Ambiente – Fiema 2010, em Bento Gonçalves – RS.
Desde o início de sua produção, a intenção de Zoravia é que as manifestações artísticas criadas a partir da sua relação com a natureza também sejam levadas até as escolas, atualizando conhecimentos e contribuindo para a formação de crianças e jovens conscientes e críticos. Segundo ela, a arte pode influenciar na mudança de comportamento da população e no engajamento das pessoas na luta contra os crimes ambientais, quase sempre
motivados pela ganância de empresas, muitas vezes ligadas a políticos inescrupulosos e corruptos.

A Volta do Gasômetro

Gravadora, tapeceira, designer de jóias, desenhista e pintora, Zoravia Bettiol é uma permanente guardiã do que
há de melhor nas artes visuais em nosso pais é uma das mais importantes referências culturais que temos no Rio
Grande do Sul. Nunca foi uma artista isolada em ateliês, mas atenta ao mundo, buscando, desde sempre, trazer
para sua obra o resultado destas observações.
Nos 250 Anos de Porto Alegre não poderia faltar este olhar aguçado da artista. A Volta do Gasômetro, da série
Paisagens de Porto Alegre de 1957, vemos uma cidade em formação, com seus casebres circundando uma usina ainda
em funcionamento, numa paisagem onde a fumaça tenta encobrir, magicamente, o que é hoje uma referência turístico-cultural de nossa cidade.

A Volta do Gasômetro, 1957 – Série Paisagens de Porto Alegre – Linoleogravura, H 25 x
L 27 cm

Zoravia, artista inefável porque comprometida com a vida dos humanos e da mãe
natureza. 

Combatendo a praga, 1981 – Série Flora – Desenho, H 100 x 70 Cm

Apolo, Série Deuses Olímpicos

“Apolo” é parte da série de xilogravuras “Deuses Olímpicos”, produzida em 1976 por ZoraviaBettiol –
aqui, carinhosamente, apenas Zoravia – e composta por doze trabalhos, cada um representando uma das
principais divindades do panteão grego clássico: Afrodite, Apolo, Ares, Ártemis, Deméter, Dioniso,
Hefesto, Hera, Hermes, Palas Athenas, Posêidon e Zeus.
“Deuses Olímpicos” – que figura entre as produções mais festejadas da carreira de Zoravia como gravadora
– pode e deve ser compreendida como bastante representativa, no itinerário da artista, por diversas
razões. Por um lado, justamente porque se trata de uma série (com o perdão da circularidade da
colocação), já que essa é uma tipologia de criação pela qual Zoravia revela predileção, sendo constante
no seu percurso criativo, a exemplo das séries “Primavera” (1964), “Namorados” (1965), “Gênesis” (1966),
“Circo” (1967), “Romeu e Julieta” (1970), “Iemanjá” (1973), “Kafka” (1977) e “Sete Pecados Capitais” (1987). Por outro lado, porque, ao promover incursão pelo universo mitológico, “Deuses Olímpicos”, com as suas deidades, os seus atributos e os seus territórios, bem ilustra o lírico, o onírico, o lúdico pelos quais a obra de Zoravia tradicionalmente transita. E, por outro lado ainda, porque nas obras de “Deuses Olímpicos” (portanto, também em “Apolo”) se podem constatar, com facilidade, tanto o domínio técnico de Zoravia para a gravura sobre placa de madeira quanto a maestria com que a artista executa a gravura a cores, isto é, não no preto-e-branco que, como se sabe, é típico à xilogravura.
Esses três aspectos – o gosto pela produção de trabalhos seriados pelo mesmo argumento, a tônica frequente da sua temática, a expertise técnica – depõem com justa abrangência sobre o perfil da obra gravada de Zoravia e bem se veem nos trabalhos que compõem “Deuses Olímpicos”.
Sobre “Apolo”, especificamente, na obra se nota a expertise da artista para o sulco da matriz de madeira, para o manejo da cor, para a impressão da gravura: todos impecáveis. Zoravia, realmente, é uma gravadora exímia. A propósito, na técnica e, também, na composição.
Atenta à abreviação a que a gravura obriga (ao contrário da pintura, onde há espaço para a nuance e o detalhe), Zoravia concebe a obra, aqui, com o minimalismo adequado. Há pouco, e o que há, basta. Apolo está posto ao centro, representado em escala gigantesca, compatível com a sua condição de divindade – tal qual se dava nas narrativas visuais de civilizações antigas, a exemplo da arte egípcia e mesopotâmica, em que a dimensão das figuras variava conforme a sua importância. Em torno do deus, agrupam-se elementos alusivos aos seus atributos. O grande disco vermelho que o emoldura, ao fundo, nos comunica a resplandecência própria de Apolo (na Ilíada, Homero já o chamava Febo, brilhante); ainda, nos alude à luz da sabedoria, da verdade, da razão, de que Apolo era emissário; e, claro, trata-se do próprio Sol, ao qual a figura de Apolo foi progressivamente associada, no curso da civilização grega.
A lira que o deus tem consigo está ali porque era esse o instrumento que Apolo tocava, patrono da música e das artes que era. Aliás, nesse particular, a criação de Zoravia faz eco à escultura clássica grega e romana, em que foi frequente a representação de Apolo com a lira em mãos. Por fim, já que ele era também o deus das profecias e da arte da adivinhação, obviamente, vemos as referências ao templo de Apolo que se localizava na cidade de Delfos, sede do mais famoso oráculo da Grécia Antiga: no pórtico do templo, ficava a estátua da Esfinge (a criatura mitológica mulher-fêmea com corpo de leão e asas, que devorava
quem não decifrasse os seus enigmas), e, nas paredes do pátio do templo, a inscrição “Conhece-te a ti mesmo”. A Esfinge e o aforismo são trazidos por Zoravia em primeiro plano, arrematando a composição da obra, tão sintética nos elementos quanto expressiva no significado.
Em suma, a concepção de “Apolo” é pautada por essencialidade, por organização simples do espaço, enfim, por poder de síntese, os quais, na verdade, são testemunhos eloquentes de outro grande traço de Zoravia: a sua tremenda criatividade. Afinal, não é possível ser conciso sem ser criativo; a criatividade é requisito para a concisão, que aqui se pode observar.
Tratei brevemente sobre “Deuses Olímpicos”, em geral, e sobre “Apolo”, em particular, à luz do histórico e das características centrais, a meu ver, da obra de Zoravia como gravadora. No entanto, não poderia concluir este comentário sem mencionar a principal razão pela qual considero esta uma obra notável: a contundência com que “Apolo” interroga quem se põe diante da obra.
Observe. O deus está posto ao centro, soberano e majestático, com o olhar orientado em ângulo oblíquo,sem fitar aquele que o contempla. Entretido com a sua lira, ele está alheio ao mundo dos homens e a sua pequenez, da qual, no entanto, nos relembra. Por outro lado, a Esfinge – esta sim – tem os olhos postos no espectador, fixos, intimidantes como ela própria (“Decifra-me ou te devoro”, dizia a Esfinge). Visto de forma atenta, o contraste entre a indiferença do deus e o ar inquisitorial e ameaçador da criatura já é capaz, por si só, de produzir o efeito de interrogação no espectador. E, claro, isso é acentuado e arremata-se por meio do confronto com o imperativo para o qual a obra, textualmente, nos aponta:
“Conhece-te a ti mesmo”.

Apolo, 1976 – Série Deuses Olímpicos – Xilogravura, H 75 x 52 cm

Altiva Zoravia, de sorriso acolhedor e de uma ampla percepção de nossas dores, dilemas e amores, é uma explosão de energia e vitalidade, embevece a todos que a conhecem e nos brinda com uma arte repleta de emoções.
Sobre esta obra, de 1953, quando Zoravia contava apenas 23 anos, mas já se destacava no mundo artístico, vemos traços e cores marcantes que nos remetem, sublimamente, à pureza da infância. A cena em tela representa o eterno retorno àquela menina e ao momento do brincar com o tempo e os seus talentos.

Boneca Preferida, 1958 – Linoleogravura, H 28 X L 28 cm

Criança adormecida

“Criança adormecida” (1961) foi uma das obras com que Zoravia Bettiol participou da 6ª Bienal de São Paulo (1961), edição organizada pelo crítico Mário Pedrosa que ficou notabilizada pelos precedentes e antecedentes que fornece aos debates e perspectivas críticas da contemporaneidade. Isso se dá pela sua proposta de confrontar a narrativa eurocêntrica da arte a partir de uma leitura transgeográfica e transhistórica da produção artística, antecipando assim discussões sobre a centralidade ocidental e o viés universalizante da História da Arte cuja problemática ganharia maior tonalidade somente com a proximidade dos anos 1980.
Quanto à obra em si, esta xilogravura fixa uma espécie de depoimento particular, que registra a condição da maternidade, a partir da intimidade que é dada a compartilhar. “Criança adormecida” foi baseada em um desenho do filho, Fernando.
Conta Zoravia que, envolvida que estava nos primeiros meses de vida do primogênito, aproveitava para desenhá-lo em muitas posições. Nessa experiência tão particular quanto intensa de vida, ela mesma e Vasco Prado chegaram a projetar babeiros e roupa de cama, que posteriormente foram confeccionados por costureiras e bordadeiras. Até no berço de madeira Zoravia e Vasco fizeram gravações e pinturas, tanto na cabeceira como na parte oposta a ela. De certo modo, tudo isso está ali presente, sobretudo nas sugestões indicadas pela incisões e pelo tratamento gráfico, como o azul que remete ao lençol e fronha com bordados e fitas azuis projetados por Zoravia.

Por conta disso tudo, “Criança adormecida” se coloca como um exemplar das demais obras da produção de Zoravia Bettiol que se fundamentam em duas linhas de força muito demarcadas: uma que aponta para a inscrição pública e mesmo histórica de seus trabalhos; e outra que aponta para um poética lírica relacionada à experiência pessoal e íntima da vida. Em ambos os casos, sendo igualmente a expressão de uma manifestação que encontra um sentido
absolutamente coletivo.

Criança Adormecida, 1961 – Xilogravura, H 46 x L 31 cm

Afrodite, Série Deuses Olímpicos

Perceba que minha negra tez é convite para o universo infinito, e minha presença, de Afrodite, sinal dos
prazeres que te ofereço, em um mundo de encanto, doce, gracioso e florido. É meu corpo denso, que avança para ti
com plenitude e graça, pois é isso que te concedo: a graça do amor erótico. Meu dom é doce; tudo que te dou te
fará sorrir com felicidade.
Pondere comigo: o meigo encontro em que a ninfa desfruta de colinho, olhos nos olhos de seu herói grego, que corresponde com vigor apaixonado, ou o abraço cálido em que os amantes se unem, sentem o alívio do mundo e vêem crescer entre ambos a potência do amor? A resposta pagã é simples e complexa: ambos, colinho, abraço e amores, pois no centro de tudo, deves saber, estou eu, Afrodite.
Não tentes fugir de mim – nem há razão sensível ou sentimento razoável para isso. Eu vou a ti, neste jardim mágico, em movimento, em que até mesmo as cores das nações em guerra tornam-se flores, em um róseo território, diante de ti, para que venhas a mim com teus sentidos e corpo e mente prontos para a verdadeira sacralidade: o amor erótico.
Não postergues nem compliques, a vida é curta! Olho-te com dupla frontalidade, de meus olhos que sempre rejubilam com teu olhar e com o brilho do desejo, e meus seios, nutrizes da vida, que te fitam e convidam para um reencontro com o mundo da unidade telúrica em corpos que realizam a sua máxima finalidade: a felicidade, com beleza, simples, acessível, com uso apenas do que temos e nada mais, o que somos e podemos ser em um mundo impregnado por minha graça.

Afrodite de Zoravia, das bonitas sandálias, da África que se faz universo, do cosmos que rejubila no encontro de olhares, da comunhão que faz o melhor da humanidade florescer e daquela busca que gera o encontro, a resposta certa e o gozo florido, êxtase de Afrodite. Vinde, vamos, sê, sejamos, e sorrirás comigo, com liberdade e a plenitude com que sonhas. Busque no lugar certo, meu mundo, sacralidade de Afrodite, e encontrarás o que precisas, com a graça do amor. Tem mais. Eu posso aparecer de todas as cores, mas para ti, hoje, eu resolvi aparecer negra.
Potente, sagrada, e bem negra, para que penses nisso e compreendas que muitas coisas podem ser transformadas, e que eu posso ser a força benfazeja que nos conduz em um novo mundo, nova era eterna, minha, tua e de todos, no afro reino de Afrodite.

Sou Afrodite, veja-me, deseje, ame. Xilogravura – H 81 x 51 cm

Família pobre I, Série Mendigos e Tipos de Rua

O abuso do corpo humano como força de trabalho escravo e objeto de exploração sexual mancham a história do
Brasil. Com a Lei Áurea, o negro liberto é jogado nas ruas, sem qualquer suporte oficial. Desprovido de renda ou
preparo, resta-lhe o serviço mais simples, quando muito suficiente para uma sobrevivência miserável. Em
contraste, o imigrante europeu recebe apoio e, muitas vezes, um lote de terra e implementos para trabalhá-la.
Aceitemos ou não, os negros são credores históricos de nosso país. “Família pobre I”, de Zorávia Bethiol, toca-nos não apenas pelo aspecto simples da mulher negra com seus filhos, mas pela melancolia no olhar. Como os pés enormes do “Lavrador de café”, de Portinari; o seio imenso de “A negra”, de Tarsila; ou o desrespeito de “A redenção de Cam”, de Brocos, o grande artista sabe captar o que mais importa.

Ciganas

ZORAVIA, MÃE GENTIL

É como se a artista abraçasse mãe, mulher e filho num abraço só, protegendo-os das ofensas do mundo. De um lado, o verde manso da terra. De outro, o fogo laranja do sol. Nesta xilogravura que retrata duas ciganas – uma mãe, com bebê ainda no colo -, Zoravia Bettiol, então com 27 anos (1962) corta resoluta a madeira com suas goivas e desenha o seu próprio estado, ela mesma mãe pela primeira vez. Mãe, também, como sempre foi e até hoje é, dos oprimidos e abandonados. Mãe, também, como sempre foi e até hoje é, da natureza desprotegida e vilipendiada.
A história da artista se reflete nas suas escolhas e nos devolve em forma de arte seu olhar único, compadecido, sobre o ao redor. As mulheres ciganas à margem, ignoradas em todas as sociedades como se não existissem, existem aqui na obra de Zoravia, e em sua descendência recém-parida avisam que continuarão. Nesta xilo de cortes texturados e decisões clean que revelam formas primordiais, uma serpente e sua sabedoria ancestral ronda sem ameaçar a cintura de uma mulher. Eva? Os fantasmas da jornada nômade, seus cacarecos de carregar na eterna andança pelo mundo reinam na roupa da mãe que protege seu rebento com um braço só, forte do seu sangue antigo

que Zoravia literaliza, correndo nas veias. As ciganas não sorriem. Nem choram. Apenas tomam seu destino pela mão e seguem. Artista do seu tempo, Zoravia registra, tornando, assim, visível o invisível.

Ciganos, 1962 – Xilogravura, H 38 x L 48 m

CASARIO – Xilogravura

Ao conviver com Zoravia Bettiol por sete anos em função do filme que dediquei a ela, o segundo da nossa Série Grandes Mestres, Zoravia (2018), conheci as múltiplas linguagens em que se exercita em mais de seis décadas de trajetória artística. Embora seja apenas um cineasta fascinado pelas artes visuais, sem formação acadêmica nem estudos regulares que me capacitem comentar obras de arte com a devida propriedade, ouvi de quem entende que a
expressão gráfica é onde Zoravia melhor se desempenha. Concordo plenamente.
As xilogravuras lhe garantem o passaporte à posteridade, como bem disse sua colega e admiradora Maria Bonomi no testemunho que deu ao nosso filme.  Nesta, Casario, as virtudes aparecem com força: o desenho inigualável, que faz as formas bailarem no ar, o uso das cores e a técnica que domina com perfeição. Todos sabem ou deveriam saber o quão difícil é o labor do buril sobre a madeira e as sucessivas intervenções da artista já prevendo o resultado final fruto das impressões que virão ao aplicar as cores, uma de cada vez.  Por mim, teria cópia de
todas as xilos que ela fez e fará! Como este sonho é impossível, me deleito diariamente com as que pude adquirir.

Casario, 1962 – Xilogravura, H 48 x 58 cm

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Uma jovem porta-estandarte de cintura fina, vem chegando protegida pelos peixinhos de todos os mares e matizes, escoltada pelos marinheiros. É Iemanjá, dona das águas e de seus habitantes, protetora dos jangadeiros e de todas as marés. Avança vindo de um fundo vermelho, como é vermelho o fluido vital.
Traz um estandarte com suas armas: as ondas do mar; Associa-se, assim, a Muladhara, ochakra da arte da arte de viver com arte, e das experiências criativas. Iemanjá também protege as mulheres de olhos esverdeados refletindo as cores das ondas do mar.
Não por acaso, Iemanjá é personagem recorrente na  obra múltipla de Zoravia Bettiol.

Salve Iemanjá. Salve Zoravia Bettiol. Odô-yà!

Agô Ôdo, Iemanjá, 1973 – Série Iemanjá, – Xilogravura, H80 x L49 cm

A Bailarina do Guarda-Sol, 1967

O circo vem aí, Série Circo

A relação do artista com sua obra não é outra senão de paixão. Paixão no seu sentido mais amplo, em que observação e sentimentos avançam, retraem-se, chocam-se, convivem e, não raras vezes, mesclam-se mesmo com suas essências antagônicas. É assim a vida. É assim a arte, um modo de apreendê-la, às vezes em plena complexidade, de forma simples. Segundo Alexandre Dumas, ( )“ É no silêncio ativo do artista que a realidade pode ser reelaborada naquilo o que tem de mais verdadeiramente significativo.” Pois bem, ela, a artista, cria para que possa viver seu destino da forma mais completa possível, o especial destino de oferecer alternativas às pessoas, independente do seu ser ou estar no mundo. Trata-se de Zorávia Bettiol, a mulher e a artista, a senhora do tempo, um verdadeiro universo inquieto em transformação, na busca da autonomia e da harmonia, valores caros ao humano.
Delicadeza, força, engajamento e poesia fazem-na múltipla e bela, tão múltipla e bela quanto sua obra, de que a gravura A Bailarina do Guarda Sol, Circo (1967), pode ser um dos paradigmas. Com cores e traços fortes, esquemáticos, Zorávia recompõe a mais popular e antiga das magias. Há, nela, a alegria do circo feita dinamismo na imagem. A beleza, a leveza e o ritmo da bailarina e dos cavalos, e a harmonia, portadora da liberdade, contrastam com a fixidez do homem em posição oposta, que traz na mão o instrumento de trabalho e comando. Há, aí, uma narrativa visual lindamente construída, capaz de vencer o tempo e abarcar a universalidade. É o que faz toda a verdadeira arte.

Série Circo – Xilogravura, H 71 x L 52 cm

A bailarina do guarda sol, Série Circo

A relação do artista com sua obra não é outra senão de paixão. Paixão no seu sentido mais amplo, em que
observação e sentimentos avançam, retraem-se, chocam-se, convivem e, não raras vezes, mesclam-se mesmo com suas
essências antagônicas.
É assim a vida. É assim a arte, um modo de apreendê-la, às vezes em plena complexidade, de forma simples. Segundo Alexandre Dumas, ( )“ É no silêncio ativo do artista que a realidade pode ser reelaborada naquilo o que tem de mais verdadeiramente significativo.” Pois bem, ela, a artista, cria para que possa viver seu destino da forma mais completa possível, o especial destino de oferecer alternativas às pessoas, independente do seu ser ou estar no mundo.
Trata-se de Zorávia Bettiol, a mulher e a artista, a senhora do
tempo, um verdadeiro universo inquieto em transformação, na busca da autonomia e da harmonia, valores caros ao
humano. Delicadeza, força, engajamento e poesia fazem-na múltipla e bela, tão múltipla e bela quanto sua obra,
de que a gravura A Bailarina do Guarda Sol, Circo (1967), pode ser um dos paradigmas. Com cores e traços fortes, esquemáticos, Zorávia recompõe a mais popular e antiga das magias. Há, nela, a alegria do circo feita dinamismo na imagem. A beleza, a leveza e o ritmo da bailarina e dos cavalos, e a harmonia, portadora da liberdade, contrastam com a fixidez do homem em posição oposta, que traz na mão o instrumento de trabalho e comando. Há,
aí, uma narrativa visual lindamente construída, capaz de vencer o tempo e abarcar a universalidade. É o que faz toda a verdadeira arte.

A Bailarina do Guarda-Sol, 1967.  Série Circo – Xilogravura, H 71 x L 52 cm

Musa da Arquitetura, Série Persona-personagem, headdress.

É junho. De qualquer ano. E o país está em festa. Festas populares de Santo Antônio, São Pedro e São João. No
restante do ano, as festas do folclore brasileiro do Terno de Reis, do maracatu, do congado, das festas religiosas à festa do Divino ou a festa do Ticumbi, no Espirito Santo ou do carnaval em todos os cantos do Brasil.
São festas de celebração de cores, formas e sensações, que cobrem de adereços o interior e as cidades brasileiras, com cultura, regionalismo e tradição. Uma arte vernacular que representa ideias sob uma forma figurada e relacionada à memória coletiva de um grupo, seus rituais, mitos e religiões. É a arte popular brasileira e a ancestralidade de um povo.
A obra “Musa da Arquitetura” compõe mais uma série da artista gaúcha ZoraviaBettiol, inquieta por natureza,
questionadora, focada no experimento, na narrativa poética, em um universo criativo permeado de um convívio
sistémico com o popular, o folclórico, a religiosidade do sincretismo brasileiro, entre tantas outras
referências que a fazem uma artista singular. Sua obra “Musa da Arquitetura” é um objeto performático que dispensa o uso do cubo branco da galeria para sair em busca de um corpo dançante e narrativo que veste a cabeça desse corpo personagem como uma espécie de chapéu protetor ou do criador das novas ideias.

Musa da Arquitetura, 1998 –  Série Persona-Personagem Headdress e fantasia, H 76 x L
57 x C 2,15 cm – Coleção da artista

Recanto do Parque Farroupilha, Série Paisagens de Porto Alegre

Neste momento de celebrar os 250 anos de Porto Alegre (26 de março), a Ecarta apresenta esta justa homenagem à grande Zoravia Bettiol, nascida na capital, ilustre artista multimeios que integra uma plêiade de porto-alegrenses como Pedro Weingärtner, Libindo Ferrás, João Fahrion, Britto Velho, Vera Chaves Barcellos, Fernando Baril e Carlos Tenius, entre outros. Zoravia desde muito cedo nos abrilhanta com seu trabalho e presença iluminada, combativa, cuja arte nos transmite alegria, cores, ironias, e, ao mesmo tempo, sabe ser politizada e militante quando a realidade impõe o posicionamento político e ambiental do artista. Trata-se de uma de nossas maiores expressões, artista “histórica” em plena vitalidade atual, obra contemporânea.

Esta gravura, “Recanto do Parque Farroupilha” (1957), na popular técnica do linóleo, adotada por muitos artistas na década de 1950, ilustra uma das paisagens mais icônicas de Porto Alegre, a nossa Redenção, na visão de um dos seus cenários temáticos, o Recanto Europeu. Entre as tantas mídias e técnicas que Zoravia trabalhou em sua carreira, a gravura – a xilogravura e o linóleo – foi a sua expressão inicial como artista consistente, no rol
do impulso dessa técnica, popularizada na sequência do sucesso dos Clubes de Gravura e das Feiras de Gravura Gaúcha da Associação Chico Lisboa.

Recanto do Parque Farroupilha, 1957. Série Paisagens de Porto Alegre. Linoleogravura,
H 21 x L 24,5 cm

Homenagem a Lutzemberger, Série Mensagens

A rede da vida, que se tece a partir da água, com a lenta diferenciação e sábia complementaridade de papéis desempenhados por incontáveis espécies, tem nos insetos seu grupo mais vasto e mais diversificado.
Eles existem há cerca de 400 milhões de anos e desde então vêm se adaptando, se transformando e superando todo o tipo de condições adversas. Desenvolveram asas quando as plantas começaram a ascender às alturas, venceram as glaciações, sobreviveram ao meteoro que acabou com os dinossauros e estarão aqui enquanto houver luz, independente do tipo de tragédia que possa vir a ser inventada pelo espírito destrutivo da humanidade. Eles sobreviverão à guerra nuclear e assim nos garantem que a vida se manterá acalentada pelas músicas e danças de alegria que caracterizam o que há de mais belo e importante neste pequeno planeta.
A força e a delicadeza destes seres de seis patas se confundem com sua importância para todos os ciclos e traduzem algo de incomensurável e especial na sinfonia da vida. Algo que ainda supera nosso entendimento embora desde o fundo dos tempos venha sendo anunciado por profetas e artistas da dimensão de ZoraviaBettiol e José Lutzenberger.
É disso que nos fala esta borboleta. Tecida a partir das cores que a circundam, ela é a fonte e o destino de reflexos de luz que sustentam o universo. Ciência, arte, ética e espiritualidade. Leveza, fragilidade e importância metabólica de um tempo infinito, articulando pó de estrelas, aminoácidos e raios de sol, neste caldo de energia de que tudo provém e para onde tudo se destina.

Homenagem a Lutzemberger, 1982. Série Mensagens. Formas Tecidas, H 26 x L 35 X C 66 cm

Eva

 

UM NOME PRÓPRIO

que a tentação nos vença em todas as horas do dia
que os frutos proibidos sejam saboreados como devem

que as transgressões nos tirem de um paraíso inexistente
– tudo é premente no agora que a rebeldia seja nossa bandeira erguida num mastro de reivindicações
que tudo o mais se desmantele no ar quero as diferenças

– apogeu das raças
e a liberdade no direito de cada um ser.

Eva, 1961. Xilogravura, H 49,5 x L 27 cm

 

A Ponte da Azenha, Série Paisagens de Porto Alegre

Sobre ser ponte

Em meio ao caos contemporâneo e à crescente evidência de mundos que se afastam em polaridades de toda a natureza e amplo espectro simbólico, a figura da ponte evoca uma imagem de aproximação.
Um território neutro em meio a polos. Um instrumento de diálogo. Um desejo ainda que velado de reconciliação.
Pontes unem diferentes e aproximam diferenças. Aceitam, toleram, acolhem. Ao mesmo tempo, um objeto único em si é também gradiente das metades que une.
Um meio para o encontro onde as polaridades tendem ao zero conciliador em seu centro.
Assim vejo Zoravia Bettiol e o encanto do olhar sereno que reflete a maturidade de quem é ponte entre mundos.
Uma ponte entre o moderno e o contemporâneo, entre o real e o fantástico, entre a fama e a reclusão, entre lendas e história.
A imagem da ponte aqui representada também evoca estas conexões do mundo particular de Zoravia. A Ponte da Azenha testemunha vivencial dos 250 anos de história de Porto Alegre criada com a missão de unir a cidade de norte a sul em um gesto geográfico, simbólico e artístico.
A manifestação viva da sabedoria do tempo por ela vivido neste mundo e tantos outros mundos concebidos em seu traço.

A Ponte da Azenha, 1957 – Série Paisagens de Porto Alegre. – Linoleogravura, H 25 x L
27,5 cm

A revolta da Pedra Redonda

Zoravia Bettiol é uma artista completa, incansável e inconformada, em permanente busca de inspiração em variadas temáticas, com diferentes linguagens e expressões artísticas contemporâneas, sem qualquer temor de atravessar a correnteza na travessia. Certamente há uma vida passada, presente e futura que guarda e guardará essa forma de ser e expressar sua arte, fundada em inquieta personalidade, plena de firmeza, delicadeza, bom humor e com visão
de mundo surpreendentemente realista.

Justiça Social, Direitos Humanos, Igualdade e Ambientalismo, são temas que impulsionam o trabalho criativo da artista. No Brasil, a destruição do patrimônio, do meio ambiente e da cultura, pertencem ao horizonte das angústias permanentes de quem questiona o futuro, sobretudo o que se pode legar às próximas gerações.

Na sua obra “Revolta dos anjos na Pedra Redonda”, a vejo encarnada nas elegantes figuras de anjos. Desenho em bico de pena com tom acinzentado sobre o papel branco, tais criaturas transmitem alertas indignados à humanidade, relacionados ao que já ocorria e agora se agrava em nosso entorno. Os querubins alertam à sociedade desigual e violenta, onde impera a lei do mais forte, poluidora, destrutiva e armada, a maioria faminta, com crianças abandonadas à própria sorte, sem arte, cultura, saúde e educação.

Zorávia aos 86 anos é uma mulher de alma jovem que não foge da militância artística, social e política e segue observando com fina percepção a vida ao seu redor. Opina e participa de movimentos pela arte, defesa do patrimônio e do meio ambiente, sempre com aquele jeito de ser e estar no mundo, colorida ou em preto e branco, corajosa, meticulosa, decidida e bem humorada. Os rebeldes e diáfanos anjos na tela empunham palavras de ordem
sobre fatos reais que ainda hoje muitos insistem em não ver, agravando a miséria social e moral circundantes.
Conhecer e usufruir de sua arte, seja política, onírica, suave ou irônica eleva a noção desse rico e diversificado repertório coerente com seu percurso, o que nos leva a querê-la conosco, em Porto Alegre e na nossa casa.

A Revolta dos Anjos da Pedra Redonda, 1980. Série Homenagem à Pedra Redonda.
Desenho à pena, H 110 X L 79 cm


Criar, Série Sentar Sentir Ser

Pequenas Delicadezas ao Duplicar uma Infância

Na intersecção do tempo, a artista Zoravia Bettiol – a partir da Série “Sentar, sentir, ser” – desenvolve um
olhar sobre a relação entre a sua própria imagem, os ícones da cultura pop, e um delicado contraste com o
universo da infância. Com uma compreensão sobre a passagem da vida, a artista sugere uma ambiguidade: o ato de envelhecer como um retorno a um lugar perdido, já experimentado e talvez nunca esquecido, portanto, uma memória que atravessa toda a extensão da vida para se conectar no seu inevitável fim. É a manifestação plena da
existência de duas infâncias, a que se vive sem a completa compreensão do ser, do tempo e do espaço, e na qual o
jogo de experimentações nos guia para as descobertas; e a que é vivida na força de não perder o encantamento de
si, uma infância ainda mais delicada e capaz de cobrar um retorno à necessidade que temos dos outros. Uma infância mais solitária em que sentamos para rever as cores brilhantes que ficaram ao fundo – exatamente no lugar em que reside o tempo passado, uma sombra a preencher tudo que ficou para trás – e que parecem isolar essa figura de uma realidade concreta e objetiva, uma realidade construída pelas inevitáveis marcas do crescimento.
Na sua obra, há – ainda que reconheçamos todos os elementos – uma ausência do tempo real, das condições do real, e de suas violências. Confrontamos assim uma ideia de Zoravia Bettiol que manuseia os elementos concretos da vida: as leis, os aparelhos tecnológicos, os telefones, a pintura, contudo conscientemente desapegada da seriedade com a qual nos vemos obrigados a lidar cotidianamente com esses símbolos. Seu manuseio evidencia algo
que está além: quer tocar a profundidade daqueles que podem deslocar o tempo e realocar simbolicamente os materiais contrastantes de toda uma vida.

Pintar Legislar Comunicar-se Musicar, 2016 Série Sentar, Sentir, Ser Gravura Digital, H 59 x 42 cm

A paisagem contida nesta xilogravura de Zoravia Bettiol, datada de 1956, resume de certa forma a trajetória que nossa artista maior iria construir nos próximos sessenta anos de uma carreira cada vez mais inesgotável de surpresas. “Paisagem Porto-alegrense” (título da obra) já apresentava na jovem Zoravia a qualidade do traço decisivo (aqui, a incisão sobre a madeira-matriz), a apreensão sintética da imagem (talvez não a real, mas a
imaginada), e a generosidade da forma circular da atmosfera que tudo cerca e une. Vejo nesta pequena obra a reunião de elementos de um sonho de acolhimento que vai se repetindo na obra da artista ao longo de sua carreira. Ao examinar num vol d´oiseau alguns trabalhos que Zoravia produziu desde sempre, percebe-se em essência, como nesta xilogravura, uma só obra confessional da pertinácia em seu fazer artístico, dos ideais coerentes que têm resistido por décadas e de um mesmo discurso, a um tempo veemente e doce, fundado sobre a
verdade da artista.

Paisagem Porto-alegrense, 1956. Série Paisagens de Porto Alegre.
Linoleogravura, H 19,5 x L 28 cm

Borboleta Azul, Série Cadeiras Pra Que Te Quero

Zoraviar sem parar

Falar da obra e do ser humano quando ambos são a mesma parte de um todo, é uma tarefa simples que poderia ser resumida a um muito obrigado por existirem. Penso ser esse o modo (digamos) simplório para dirigirmos a palavra
para Zoravia Bettiol. Porém não nos enganemos, não sejamos cegos nessa hora precisa. O que sabemos dessa vida pública filtrada em mais de sessenta anos? Tudo.
Considero Zoravia Bettiol o ventre nascente de todas as lutas, todas as bandeiras levantadas contra injustiças,
voz incansável das dores do mundo. Líder natural na classe artística.

Baseado nesta visão da artista/obra é que cunhei a expressão “zoraviar semparar”. Está lá, foi impressa nos anos 1970 do século passado. E é isso mesmo, zoravia é lutar pelo que se quer, pela mudança do mundo, lutar e
reconhecer além de si, o outro.
Zoravia, uma mulher de dois séculos, seguirá atemporal. Ser e obra.

Sobreviveremos

Sobreviveremos?
“Exigimos arte na escola”, “Respeite a criança e o idoso”, “Casa e comida para todos”, “Inflação”, “Prisão aos corruptos”, “Não destrua a natureza”. Nas palavras de ordem escritas nas faixas deste desenho de Zoravia Bettiol, estão demandas que conhecemos muito bem. O trabalho é datado de 1998, mas seu clamor atravessa o tempo:
muito antes e bem depois disso, tanto ontem quanto hoje, esse protesto ecoa pela sociedade brasileira com a mesma determinação com que é ignorado pelos poderosos.
Criadora decana que extrai da tradição e do passado vigor para interpretar o presente e enfrentar o futuro, Zoravia conjuga uma plêiade de referências artísticas e históricas nesta obra da “Série Brasil 98”, tornando sua expressão ao mesmo tempo atemporal e contemporânea. As figuras e as cenas estão abarcadas dentro de uma forma ovalada, dispostas todas em primeiro plano, sem profundidade de campo, disputando entre si o protagonismo da narrativa e do olhar. No alto, há uma floresta desmatada e incendiada; no meio, um casal com uma criança e um
cavalo; embaixo, uma multidão protestando.
O arco temporal sugerido por essa representação pictórica contempla desde as primitivas imagens gravadas em estelas de argila e pedra na remota antiguidade até a linguagem da propaganda contemporânea – passando pela arte medieval, pelas iluminuras religiosas, pelas gravuras descritivas de jornais e revistas, pelo expressionismo proletário gráfico de Käte Kollwitz, pelo lirismo surrealista de temática judaica de Marc Chagall, pelo Taller de Gráfica Popular do México, pelo Clube de Gravura de Bagé.
No limite, esta obra encapsula as dores do mundo – do atual, mas também daqueles que nos antecederam, até os princípios. “Sobreviveremos?”, pergunta a artista no título do desenho. Se nos ativermos exclusivamente à data de concepção do trabalho, a resposta é positiva, apesar de tudo. Zoravia Bettiol, porém, é também uma ativista engajada nas lutas sociais, civis e ambientais, e portanto sabe que é preciso sempre estar atento e forte para
não ter tempo de temer a morte.

Sobreviveremos?, 1988 – Série Brasil 98  –  Desenho, H 96 X L 66 cm

Pai e filho envoltos pelo líquido placentário. Àgua cristalina a lavar seus corpos da sujidade do mundo, num ritual de purificação que os fortalece para o exercício da vida. A obra inspira segurança, confiança mútua, pertencimento. No rosto da criança descobrimos serenidade, suave expectativa, curiosidade pelo que, diante de si, se descortina. Um esboço de sorriso o ilumina, seguro pelo pai a lhe mostrar o mundo. Ambos abrem-se, sem reservas, aos nossos olhos. Corpos nus em prontidão, disponíveis, guardando em si a vontade que antecede o
movimento, a escolha. Não há sobressalto nesta imagem. O quadro respira suavemente. Zoravia é uma artista consciente, crítica e engajada, que tem na arte o seu único e poderoso instrumento de fala. Ela sabiamente escolhe em meio à violência, guerra, destruição, miséria, fome e morte que grassam o mundo, manter viva a esperança. Traz  o espectador para o centro da cena e revela nossa própria nudez como agentes de nossa história.
Então… que roupa escolheremos vestir?

Paternidade, 1962. Xilogravura, H 65 x L 41 cm

A paz é carregada penosamente por homens e mulheres que  puxam e empurram o carro da
História. A pomba é cinza e pétrea, mas quer voar contrastada com um horizonte que abriga uma tênue aurora, um
amanhecer eclipsado por montanhas sem árvores onde as bombas de fogo e morte deitarão espasmos de dor e lamentos
que não irão chegar até a consciência obscura dos que as gestaram. Estes estão escondidos nos nichos de
valorização das ações das fábricas de armas, em Wall Street, e nos Palácios de Governo, nos templos da burocracia que criam os mitos, tanto dos bombardeiros limpos como dos seus pesadelos sujos de sangue. Este quadro é, ao mesmo tempo, a denúncia de Picasso, em “Guernica” e o “Angelus Novos” de Klee. Síntese magnifica dos tempos cinzentos que vivemos no Brasil e no mundo.

Paz Ameaçada, 2003. Desenho à pena e lápis de cor, H 63,6 x L 83,6 cm.
Gravura Digital, H 37 x L 45,5 cm

Nem a Zoravia sabia, mas esse desenho se autobatizou com um segundo nome, secreto até agora:
A Pomba de Troia. Não fossem os aviões tão mais modernos, o traço da Zoravia estaria totalmente lá.  A ave entraria por portões fortemente guarnecidos, que se abririam sem resistência. Lá dentro, de dentro dela, sairiam milhares de pequenos pássaros, que se alojariam nos corações secos das pessoas. A paz ameaçada ainda é paz. A paz ameaçada sempre reage. Não com bravatas e bombas, mas com pombas. No manifesto da Zoravia, a paz reage com pena e lápis de cor. Mais cedo ou mais tarde, esses aviões de guerra se chocarão uns contra os outros no céu.
Então a pomba alçará seu voo.  O traço da artista revela que a paz pede esforço e união. No desenho, há quem puxe, há quem empurre, há que lidere. Na mesma direção. É preciso energia e soma para que a paz avance. Há oito
pessoas a fazer força. Seis mísseis. Quatro aviões no céu. Duas rodas. E uma, ímpar e única, pomba da paz. Não existe a minha e a tua. Só existe uma: a nossa.

Autorretrato, Sem série

Zoravia Bettiol é uma força da natureza e tudo no tocante às suas obras e contribuições artísticas demonstra
isso. Sua colaboração à arte nessa existência ultrapassa barreiras, maneiras, percepções e tempos, tal qual seu fazer artístico que se mistura, inegavelmente, a si própria.
A obra Autorretrato (2002) a define de maneira
peculiar. Mostra não uma, mas algumas “Zoravias” em efusivas e enigmáticas caras, cores e significados. As simbologias presentes na obra, peculiaridade característica de seu trabalho, conseguem imprimir a personalidade
(ou as personalidades) da artista com maestria. É possível enxergá-la de maneira muito fidedigna, quando há ali um sintetização de si, que evidentemente não dimensiona o tamanho real e, incomensuravelmente, gigante de
Zoravia, já que se trata de um autorretrato. A obra consegue mostrar muito menos do seu tamanho imenso, e ainda assim mostrá-la, pois é exatamente assim que ela é, gigante e pequenina para servir em nós e perto de nós.

Autorretrato, 2002. Peça única. Serigrafia (Prova de Artista), 101 x L 61 cm

Coleção da artista

Praia da Pedra Redonda, Série Paisagens de Porto Alegre

“Praia da Pedra Redonda” é uma linoleogravura, realizada por Zoravia Bettiol em duas matrizes a partir de
desenhos ao ar livre, anotações e observações. Faz parte da série de dez gravuras “Paisagens de Porto Alegre”.
Nessa gravura, utilizando diferentes linhas e texturas, o processo de impressão ganha destaque. Com apenas uma cor, extraindo tons do preto ao cinza e o branco do papel, são percebidas muitas tonalidades que foram obtidas ao entintar as matrizes com diferentes intensidades da tinta, que criam os efeitos de luz e sombra, valorizam as
linhas do desenho e nos permitem imaginar o entardecer ao pôr do Sol.
Realizada em 1958, expressa muito bem o momento em Porto Alegre, em que as artes visuais, a cultura fotográfica e a cultura impressa se relacionavam e passaram a ter um importante papel na elaboração da imagem do espaço urbano da cidade.
Como outros artistas de sua geração, nesse período Zoravia desenvolveu em suas obras o interesse em apresentar marcos visuais da cidade através de seu olhar. Com seu andar caminhante, olhar atento à cidade, às pessoas e à história, com sua arte ela transita pelo desenho, a gravura, a tapeçaria, a pintura, joias, murais, objetos, performances, instalações que sempre nos levam ao encantamento, à beleza e à reflexão.
Do tempo em que passeávamos na “Praia da Pedra Redonda”e ainda podíamos nos banhar no Guaíba, hoje essa gravura nos transmite um lado melancólico se considerarmos as constantes transformações da paisagem em nossa cidade, aqui preservada na memória, na
afetividade e na arte da Zoravia.

Praia da Pedra Redonda, 1958. Série Paisagens de Porto Alegre.
Linoleogravura, H 26 x L 27,5 cm

Mendiga Estranha, Série Mendigos e Tipos de Rua

Ceguinho, Série Mendigos e Tipos de Rua

Zoravia Bettiol: um olhar atento

.Como artista, Zoravia Bettiol nega-se a
ficar diante de um espelho e mirar-se,
repetir-se, copiar-se.

Érico Veríssimo, 1974.

Ser artista, por mais irônico que possa parecer, é um ofício. O ofício do artista requer disciplina e habilidades. Já se disse que artistas não fazem apenas arte. O resultado do seu fazer/ofício ― a obra de arte ―
tem o poder de nos transformação. Ela evoca sentimentos de reconhecimentos, seja do outro, seja de nós mesmos. O artista é o condutor atento para que possamos ter estes reconhecimentos.
Diante do espelho de sua vida, nada passa desapercebido do olhar condutor de Zoravia Bettiol. E, através da sua habilidade artística percebemos a natureza dos fatos que nos cercam. Mas, por mais dura que seja esta realidade, Zoravia transmite uma mensagem até agora complexa de maneira muito simples. Segundo a própria artista é preciso
ter muita sensibilidade e um olhar atento do mundo e expressar isso em arte.
As obras Mendiga estranha (1956), e Ceguinho (1957), ambas da série Mendigos e tipos de rua, de Zoravia Bettiol, são o resultado de um olhar que sempre esteve atento às causas sociais, culturais e ambientais. A quem importa representar uma mendinga e um ceguinho? A resposta é muito simples: importa aos que se reconhecem no outro,
mesmo que não sejam iguais ao outro. Mendiga estranha e Ceguinho, são obras com mais de 60 anos e se mantém
contemporâneas. Pois, são validadas por se situarem em um contexto mais amplo que a simples representação iconográfica da condição humana.
As obras de Zoravia Bettiol são poemas de seu ofício de gravadora. Ela é aquela senhora de olhar terno que nos conta histórias em forma de poesia.

Ceguinho, 1957. Série Mendigos e Tipos de Rua. Linoleogravura, H 27,5 x L 19,5 cm

Mendiga Estranha, 1956. Série Mendigos e Tipos de Rua. Linoleogravura, H 27,5 x L 20
cm

Negativo e positivo são elementos da gramática da gravura. Equilíbrio de opostos, tinta e papel. Linguagem nascida da ausência causada pela goiva, do vazio que se torna volume na superfície branca.
As cores e os elementos simbólicos se equilibram em um trapézio em movimento. Feminino e masculino são polos que balançam no espetáculo circense.
Picadeiro de lona azul, de cordas e redes amarelas, cores que se enfrentam na obra de Zoravia Bettiol. As flores vermelhas pontuam a existência do solo, e o rubro se desdobra nas fitas que enlaçam as pernas da moça. Cada cor na “gravura à cores” condiciona um tempo. Quando a cor está seca, o papel está pronto para receber outra cor que se sobrepõe à primeira. Camadas sobrepostas, como veladuras serigráficas na era da reprodutibilidade técnica. Obra de arte, tiragem, cópias inexatas.
A escada branca, cavada de goiva em madeira, não é cor, é papel. Ali a linguagem se revela, e revela também o domínio de quem a utiliza. Espaço cruzado, respiro de luz, fundamental para o equilíbrio das cores vivas e pulsantes.
A obra “Moça no Trapézio” celebra o movimento e a força do fazer artístico, é uma saudação aos artistas. Do mundo mambembe, de um balanço que vai ao encontro da vida, o trapézio em que a alma se entrega. Zoravia Bettiol traçou seres com a força de deuses, moça e moço da pele preta, espelhos da mesma massa, tinta que finaliza a impressão.

Moça no Trapézio, 1967. Série Circo. Xilogravura, H 80 x L 40 cm

abertura
26 de março de 2022, 10h
visitação
Até 8 de maio, de terça a sexta-feira, das 10 às 18h
local
Galeria Ecarta (Avenida João Pessoa, 943, bairro Farroupilha, Porto Alegre – RS)